Perguntas como "qual é a melhor tarântula para iniciantes?", "como criar uma sling (filhote de aranha)?" e "como montar um terrário?" estão em alta em vídeos virais nas redes sociais, com dezenas de milhares de visualizações (em alguns casos, milhões).
Elas explicitam o interesse crescente de brasileiros pela criação de aranhas, especialmente tarântulas — um animal silvestre cuja manutenção em cativeiro é crime no Brasil, com pena de multa e detenção de até um ano.
O mercado clandestino de aranhas movimenta milhões de reais, com opções inclusive de vendas parceladas — tem espécie que chega a ser vendida por R$ 1,2 mil — e realização de rifas.
Ao menos dois fatores podem explicar a força desse crescente mercado ilegal, segundo especialistas e colecionadores.
Um deles é a baixa punição: menos de cem multas aplicadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) nos últimos 20 anos citam o termo “aranha” ou “aracnídeo”, quase todas de baixo custo (exceto em casos com grande número de animais apreendidos).
Outro motivo é a facilidade de comprar esses animais online, especialmente em grupos populares de Facebook e Whatsapp.
"Nunca vi o Ibama invadir a casa de alguém por criar uma tarântula", escreve um colecionador em uma das páginas dedicadas ao tema no Instagram.
A BBC News Brasil acompanhou diversos grupos fechados, por cerca de um mês, em que aranhas e outros animais silvestres eram vendidos.
Nem todos os grupos e publicações são dedicados à venda: há usuários que apenas discutem sobre o assunto. Mas as postagens mais comuns são justamente as de comércio.
Um desses grupos, no Facebook, tem quase 4 mil membros e postagens diárias. Nas mensagens, usuários mostram seus próprios bichos, tiram dúvidas sobre a criação, além de vender manuais, terrários (recipiente para a criação) e espécimes. Contrabandistas prometem entregar os animais em estações de trem e metrô de São Paulo.
Os grupos de Whatsapp têm mais de 100 membros cada e centenas de mensagens enviadas todos os dias. Lá, os animais se misturam: aranhas, cobras, escorpiões e até ouriços.
Nesses grupos, os participantes também compartilham experiências, imagens dos próprios bichos e tiram dúvidas sobre espécies.
"Tenho o prazer de compartilhar o primeiro projeto de Brachpelma klassi (espécie de tarântula) do Brasil", diz um usuário. "Já estão lingando" (tendo filhotes).
Um dos guias difundidos em alguns desses grupos diz logo na primeira parte que um dos principais cuidados que um iniciante deve ter é "noção de que se trata de um hobby ilegal."
"Alguém já teve experiência com apreensão? Que problema posso ter?", escreveu um usuário em uma página popular entre colecionadores no Facebook. "É só uma multa", diz um dos usuários.
O biólogo João Lucas Gusso, de 32 anos, moderador de um dos maiores grupos no Facebook, com 50 mil membros, diz que a prática da criação de cativeiro vem crescendo ano a ano e que a maioria não sabe que é ilegal.
“Como é um pet não convencional, acaba gerando uma curiosidade e interesse nas pessoas.”
Gusso afirma que, desde que virou moderador da página, em 2020, anúncios de venda e compra não são permitidos, embora usuários ainda tentem fazê-los.
O objetivo da página, diz ele, é “a “identificação de aracnídeos, orientar sobre possíveis acidentes e tirar dúvidas frequentes sobre aracnídeos".
"O simples ingresso no grupo e interação com as pessoas não é crime, desde que não configure tentativa de venda ou aquisição dos animais, apologia ou incitação a algum delito previsto na lei de crimes ambientais", diz o professor da FGV Direito Rio, Carlos Wehrs.
Em nota, a Meta disse que não permite conteúdo sobre compra, venda, comércio, doação ou oferta de espécies em vida selvagem, e que usa "uma combinação de tecnologia, denúncias da comunidade e revisão humana para aplicar essas regras."
Sobre o Whatsapp, a empresa disse que não tem acesso ao conteúdo das mensagens trocadas entre usuários e não realiza moderação de conteúdo, mas que não permite o uso do seu serviço para fins ilícitos ou que instigue ou encoraje condutas que sejam ilícitas ou inadequadas.
Rifa e compra parcelada de aranha
Um artigo ainda não publicado e obtido pela reportagem mapeou esse comércio online e estimou, em 14 grupos, movimentação de R$ 3 milhões em vendas desses animais em um ano. O estudo foi elaborado pela Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas) e pelo biólogo Sérgio Henriques, coordenador de conservação de invertebrados no Global Center for Species Survival.
O levantamento identificou que a maioria das postagens estava relacionada a aranhas nativas do Brasil, embora houvesse também outras vindas de países africanos, do México, Paraguai, Argentina e outros. Um terço das espécies mais mencionadas estavam listadas na Cites (Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies Silvestres Ameaçadas de Extinção).
"Virou uma febre o hobby, principalmente entre jovens de classe média. Todo mundo quer ter o bicho mais diferente, o maior, o mais agressivo. Tem muita vaidade em jogo", diz Dener Giovanini, que fez parte do estudo e é coordenador da Renctas. O preço médio por uma tarântula é de menos de R$ 200, mas algumas espécies eram vendidas por até R$ 1,2 mil, caso de uma Phamphobeteus sp.
"Rifa! Chegou a sua oportunidade de ganhar uma incrível aranha caranguejeira Lasiodora Parahybana. Essa espécie de tarântula é conhecida por sua beleza exótica e comportamento fascinante. Com suas pernas peludas e tamanho impressionante, ela é uma joia rara para os amantes de aracnídeos. Mais informações, chamar no privado", escreveu um usuário em um dos grupos.
Como mencionado no início da reportagem, membros desses grupos reconhecem e até discutem a consequência das práticas, como as multas que podem ser aplicadas. Também trocam informações sobre as melhores formas de transporte para despistar autoridades.
Outros criticam as regras atuais. Uma postagem questiona, por exemplo, por que matar uma aranha não é considerado crime, ao mesmo tempo em que comprar uma é enquadrado como ilegal. Há também uma visão de alguns usuários de que a criação informal pode estimular a conservação, o que é enfaticamente criticado por especialistas.
"Algumas pessoas gostam de colecionar aranhas como quem coleciona objetos. Querem montar e mostrar essa coleção”, diz Sérgio Henriques, que coordenou o estudo.
A coleta desses animais na natureza causa um desequilíbrio, ele explica.
“Tirar uma aranha [do habitat natural] em si parece que é só um indivíduo. Se alguém tira uma fêmea, você elimina toda uma geração. Elimina toda aquela possibilidade de reprodução que aquele animal representava”, diz.
Henriques menciona que as tarântulas podem viver até 40 anos.
“Se tirar [do habitat natural], dificilmente vai recuperar aquela função no ecossistema. Como qualquer outro predador, aranhas são uma parte importante para manter um equilíbrio natural. A sua herança genética, toda informação evolutiva que ela adquiriu, agora foram tirados de lá.”
Venda autorizada em criadouro?
Entre os vídeos populares que circulam sobre o tema, está um que começa assim: "Você já viu uma aranha fazendo amor?".
Ele está no canal no Youtube do biólogo e apresentador Richard Rasmussen, que se popularizou em programas de TV sobre natureza e vida selvagem e, depois, como embaixador do ecoturismo (título simbólico) do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, em 2019.
O vídeo foi gravado na Reserva Dracaena, em Nova Iguaçu (RJ), que a partir deste ano obteve do governo do Estado autorização para criar, reproduzir e até vender aracnídeos.
O empreendimento tem tratado da licença como um grande lançamento comercial, com vídeos para atiçar a curiosidade do público e lives para tirar dúvidas — todos eles com dezenas de comentários de pessoas ansiosas para comprar um animal.
Segundo o Ibama, dois criadouros no país estão registrados com a permissão de vender estes animais — além do Dracaena, há o Exotic Pets, no Paraná que disse à reportagem nunca tê-los vendido ou reproduzido.
Mais de 150 mil pessoas assistiram ao vídeo, que faz um apelo para que espécimes sejam doadas ao criadouro.
"Não há como ser contra esse processo e viver nas trevas pra sempre. Não podemos, no país da biodiversidade, não ter a mínima ideia de como reproduzir esses animais", diz Rasmussen. “A soltura, em muitos casos, mata o animal que está sendo solto.”
O próprio Rasmussen já teve um criadouro, a Casa das Tartarugas, mas o local foi autuado pelo Ibama, que disse que o empreendimento não comprovou a origem legal dos animais.
Um advogado do criadouro disse ao jornal Folha de São Paulo, à época, que o registro do criadouro estava em dia, que foi gasto mais de R$ 1,5 milhão para adaptar as instalações a um laudo realizado pelo Ibama e que os animais tinham sido doados ou entregues pela Polícia Ambiental.